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A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial
"Este resumo apresenta, em linhas gerais e com exemplos concretos, os principais argumentos, fontes e resultados do livro de Carlos Gabriel Guimarães, A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial: os casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia. (1854–1866) e da firma inglesa Samuel Phillips & Cia. (1808– 1840).'
A obra, publicada pela Editora Alameda em, 2012, reconstrói dois estudos de caso para iluminar um processo mais amplo: a maneira como agentes britânicos — banqueiros, casas comerciais e seus correspondentes — se enraizaram na economia luso‑brasileira entre a abertura dos portos, em 1808, e as décadas centrais do século XIX, moldando práticas de crédito, fluxos de pagamentos internacionais, redes de confiança e a própria relação do Estado com o mercado de capitais.
Ao acompanhar as trajetórias de um grande empresário brasileiro, Irineu Evangelista de Sousa (o futuro Barão e Visconde de Mauá), e de um comerciante britânico, Samuel Phillips, Guimarães demonstra que a presença inglesa não foi apenas externa ou episódica; foi institucionalizada em contratos, em mecanismos de financiamento do comércio, em bancos e em arranjos de intermediação entre a Fazenda imperial e o mundo das casas de Londres, Liverpool e outras praças atlânticas.
O livro parte de uma moldura histórica bem definida. A transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1808) e a abertura dos portos quebraram o antigo sistema colonial de exclusivo metropolitano, criando um ambiente regulatório mais permeável à entrada de capitais e mercadorias estrangeiras.
Os tratados de 1810 com a Grã‑Bretanha, em especial as vantagens tarifárias concedidas aos produtos britânicos, consolidaram uma assimetria que favoreceu a rápida expansão das casas inglesas na praça do Rio de Janeiro. Esse avanço coincidiu com transformações internas: o café tornou‑se a principal exportação, o tráfico atlântico de escravos prosseguiu até meados do século e a circulação de letras de câmbio conectou produtores, comissários, firmas exportadoras e bancos no circuito Brasil– Londres.
A obra enfatiza que foi nessas interseções — comércio de exportação, crédito mercantil e finanças públicas — que a presença inglesa se fez estrutural. Guimarães trabalha com uma documentação de difícil acesso, como livros‑razão, cartas, balanços e contratos de sociedades, além de periódicos comerciais e relatórios oficiais. O objetivo não é narrar um 'domínio britânico' abstrato, mas mostrar como, no nível micro, articulavam-se decisões sobre prazos, garantias, descontos de letras, remessas de metais e vales do Tesouro.
A análise combina prosopografia — reconstrução de redes de sócios e correspondentes — com história empresarial e financeira, permitindo observar a plasticidade das formas societárias (companhias em comandita, sociedades bancárias, filiais) e as estratégias de gestão de risco num mercado marcado por ciclos, crises e forte dependência de condições externas.
Caso 1- Samuel Phillips & Cia. (1808–1840): O primeiro estudo de caso acompanha a instalação e a atuação da casa inglesa de Samuel Phillips desde a abertura dos portos até o fim do período joanino e o Primeiro Reinado. A firma operava na fronteira entre comércio e finanças: importava manufaturas britânicas, adiantava créditos a negociantes locais, realizava consignações, comprava açúcar, algodão e, mais tarde, café para exportação, e, sobretudo, movimentava letras de câmbio e remessas para Londres.
A posição dessa casa foi reforçada por serviços prestados ao próprio Estado: como procuradora e agente financeiro em operações pontuais, auxiliava na colocação de ordens de pagamento, na conversão de moedas e no atendimento a compromissos externos. A trajetória de Phillips evidencia a rapidez com que os britânicos dominaram a infraestrutura de pagamentos de longo curso sem, contudo, suplantar completamente os negociantes luso‑brasileiros — muitas vezes, tornaram‑se seus sócios e financiadores.
As práticas de crédito da firma. Phillips & Cia. utilizava um repertório de instrumentos típicos do capitalismo mercantil: contas correntes com juros, descontos de letras, prazos baseados em viagens transatlânticas e garantias lastreadas em mercadorias. A elasticidade desses instrumentos permitia responder à sazonalidade das safras e às oscilações do câmbio. A casa funcionava como um nó de confiança: atraía depósitos e ordens por sua ligação com bancos londrinos, enquanto distribuía crédito localmente, aprofundando a dependência da praça carioca em relação às condições do mercado inglês.
Essa intermediação, ressalta o autor, não era neutra: definia quem tinha acesso ao capital de curto prazo e a que custo. A atuação de Phillips também mostra a fragilidade estrutural de um sistema financeiro ainda raso. Choques externos — guerras, bloqueios, mudanças tarifárias, crises de liquidez em Londres — atravessavam o Atlântico e afetavam diretamente a capacidade de financiamento e de giro das casas no Rio.
Como a monetização interna era insuficiente e o meio circulante escasso, as letras e o câmbio cumpriam funções de moeda; qualquer perturbação no desconto dessas letras acabava por imobilizar capitais e provocar falências em cadeia. O fechamento da firma, por volta de 1840, deve ser lido nesse marco, não como exceção, mas como parte da recomposição de redes e capitais num mercado em transição do antigo comércio colonial para um capitalismo de feição bancária mais moderna.
Caso 2 - Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia. (1854–1866): O segundo estudo tem como protagonista Irineu Evangelista de Sousa, um empresário que representa a tentativa mais ambiciosa de construir, a partir do Brasil, um conglomerado moderno de finanças, comércio e infraestrutura. A sociedade bancária criada em 1854 unia o capital e a liderança de Mauá ao know‑how e às conexões internacionais de sócios britânicos, como James MacGregor, e articulava uma rede de casas em diferentes praças (Rio, Montevidéu, Buenos Aires, Londres).
Seu escopo incluía depósitos, descontos, emissão de vales bancários, financiamento de obras (portos, estaleiros, ferrovias), comércio de importação/exportação e operações com a Fazenda. Assim, a presença inglesa não aparece apenas como concorrência externa: ela é internalizada na própria arquitetura institucional de uma casa 'brasileira' de aspiração global. Mauá, MacGregor & Cia. inovou ao integrar atividades bancárias com negócios industriais e de infraestrutura, algo pouco comum na praça carioca.
A sociedade captava recursos junto a poupadores e grandes negociantes, operava contas correntes e oferecia descontos em escala, reduzindo o custo do crédito para setores dinâmicos como o comércio de café e a navegação a vapor. As filiais e correspondentes no Prata e em Londres permitiam arbitragens cambiais e acesso a funding externo, essencial para empreendimentos de longo prazo. A governança combinava práticas britânicas de contabilidade e auditoria com a flexibilidade típica das sociedades em comandita locais, o que favoreceu a rápida expansão inicial.
O relacionamento com o Estado imperial. Uma das teses centrais do livro é que as casas inglesas e as sociedades mistas com capitais britânicos tornaram‑se parceiras indispensáveis da Fazenda, especialmente em momentos de estresse fiscal (guerras externas, flutuações de receita alfandegária, serviço da dívida). Mauá, MacGregor & Cia. operou como agente em operações de curto prazo, fornecendo adiantamentos e administrando pagamentos internacionais.
A contrapartida era acesso privilegiado a títulos, contratos e informação. Esse arranjo tornava porosa a fronteira entre finanças públicas e privadas, com benefícios mútuos, mas também com risco moral e exposição a mudanças de governo e de política econômica.
Crises - 1857 à 1866, e a queda da sociedade: O ciclo de prosperidade foi interrompido pela crise financeira internacional de 1857, que derrubou casas comerciais em várias praças do Atlântico. A sociedade de Mauá resistiu inicialmente graças às conexões e à reputação, mas a década seguinte trouxe novos choques: a Guerra do Paraguai (1864– 1870) pressionou o Tesouro e o mercado de crédito; a crise inglesa de 1866, detonada pela quebra do banco Overend, Gurney & Co., enrijeceu o funding externo; e, no Rio, a falência da casa Antônio José Alves Souto (1864) reverberou por todo o sistema.
Nesse ambiente, a combinação de investimentos de maturação longa, passivos de curto prazo e deterioração cambial tornou a posição de Mauá, MacGregor & Cia. insustentável, levando à sua liquidação em 1866. O episódio sintetiza o dilema de um capitalismo periférico: forte dependência das condições de liquidez do centro e vulnerabilidade a crises importadas.
Um fio condutor dos dois estudos é a centralidade das redes de confiança — pessoais, familiares e de praça — para a concessão de crédito. Em ambientes de baixa regulação formal, as práticas contábeis, a reputação e a persistência de relacionamentos substituíam instituições ausentes (um banco central, seguros de depósito, mercados secundários líquidos).
Casas inglesas aportavam, além de capital, padrões de escrituração, auditoria e disciplina no cumprimento de prazos; empresários locais, por sua vez, ofereciam conhecimento de mercado, laços com produtores e capacidade de operação cotidiana. O cruzamento dessas virtudes explica o dinamismo do período, mas também os custos sociais quando as crises rompiam as correntes de pagamentos.
Guimarães dialoga com uma historiografia que ora vê a presença inglesa como ‘imperialismo do livre‑comércio’, ora como parceria funcional ao crescimento exportador. O autor recusa caricaturas: mostra assimetrias reais — vantagens tarifárias, dependência de crédito, transferência de lucros —, mas também destaca como agentes brasileiros, a exemplo de Mauá, apropriaram‑se de práticas e capitais britânicos para construir projetos próprios. O balanço sugere uma relação de interdependência assimétrica, mais complexa do que simples dominação.
O caso Phillips ilumina o período de formação do mercado, quando o crédito mercantil e as firmas inglesas preencheram lacunas institucionais após 1808. O caso Mauá evidencia a tentativa de transição para um capitalismo financeiro com bancos modernos, ao preço de maior exposição a choques internacionais. Colocados lado a lado, os casos mostram continuidade organizacional (redes atlânticas, letras de câmbio, casas correspondentes) e mudança (da firma mercantil à sociedade bancária e de projetos comerciais a investimentos em infraestrutura).
Um aspecto sensível que o livro não contorna é a inserção dessas casas numa sociedade escravagista. A expansão do café, sustentada por trabalho cativo até 1850 e por regimes de servidão contratada e formas coercitivas depois disso, forneceu lastro — mercadorias, receitas, hipotecas — para o sistema de crédito. Parte dos lucros britânicos derivou direta ou indiretamente dessa base social. Ao mesmo tempo, pressões diplomáticas inglesas contra o tráfico de escravos criaram tensões com interesses locais, revelando que a 'presença inglesa' não era homogênea: finanças e comércio podiam conviver com políticas antitráfico e com disputas geopolíticas.
A obra destaca ainda o papel da tecnologia (navegação a vapor, telégrafos mais tarde) e da imprensa comercial na aceleração de prazos e na difusão de preços e cotações. A defasagem informacional — semanas entre um evento em Londres e sua chegada ao Rio — era um risco mensurável que condicionava prazos de letras e taxas de desconto. Empreendimentos como estaleiros, companhias de navegação e ferrovias vinculavam diretamente o circuito financeiro às inovações materiais, outro traço da presença inglesa.
Diante da escassez de moeda metálica e papel‑moeda confiável, o câmbio com Londres funcionava como âncora prática para transações. Casas com conexões inglesas facilitavam remessas em ouro e prata, arbitravam entre moedas e sustentavam a conversibilidade implícita dos compromissos internacionais.
As variações do preço da libra em mil‑réis eram, portanto, mais do que um indicador: eram um mecanismo de transmissão de choques, como se viu nas crises do fim da década de 1850 e meados de 1860. Longe de um retrato hagiográfico, o livro insere Mauá num ecossistema de oportunidades e restrições. Sua capacidade de organizar consórcios, dialogar com governos e captar recursos externos explica projetos como estaleiros, iluminação a gás e ferrovias.
Porém, a mesma ambição levou a uma alavancagem elevada, vulnerável a mudanças de humor creditício em Londres e à política fiscal imperial. A parceria com sócios britânicos foi simultaneamente alavanca e canal de contágio de crises.
Embora a sociedade de 1854 tenha sido liquidada em 1866, o legado institucional da experiência — a prova de conceito de um banco universal integrado a comércio e infraestrutura — ecoou em iniciativas posteriores e alimentou debates sobre regulação bancária, papel da Fazenda e desenvolvimento do mercado de capitais. No plano mais amplo, a presença inglesa deixou infraestruturas, práticas de gestão e uma elite empresarial transnacional, sem as quais é difícil compreender o capitalismo brasileiro do final do Império e da Primeira República.
Conclusão geral do autor: Guimarães sustenta que a presença inglesa foi constitutiva do capitalismo brasileiro oitocentista, não um apêndice. Ela estruturou o financiamento do comércio exterior, apoiou o Estado imperial na gestão de compromissos e incentivou a modernização de práticas contábeis e bancárias. Ao mesmo tempo, cristalizou dependências financeiras, expôs a economia a choques externos e reproduziu assimetrias típicas de uma periferia exportadora. O diálogo entre os dois estudos de caso permite ver, com nitidez, os ganhos e os custos dessa inserção no capitalismo atlântico.
Observação final: Este resumo é interpretativo e procura manter fidelidade às linhas mestras da obra. Para citações, dados e demonstrações completas, consulte a edição: Guimarães, Carlos Gabriel. 'A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial': os casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia. (1854–1866) e da firma inglesa Samuel Phillips & Cia. (1808–1840). São Paulo: Alameda / FAPE 2012."
Artigo por Acadêmico Prof. Dr. Vicente Pacheco
Contador, professor no DECONT/UFPR, ocupa a cadeira nº 25 na Academia de Ciências Contábeis do Paraná e a Cadeira nª 4 na Academia Brasileira de Contabilidade.
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