"1. Introdução
O sistema tributário brasileiro tem sofrido, nas últimas décadas, forte erosão em sua neutralidade devido à ausência de atualização monetária das bases de cálculo de diversos tributos. Enquanto o governo federal mantém congelados limites e faixas de tributação —como o adicional de IRPJ, o teto do Simples Nacional e a tabela do IRPF —, a inflação corrói o poder de compra desses parâmetros, ampliando a carga tributária real sobre contribuintes. Paralelamente, surgem propostas de novas fontes de receita, como o PL nº 1.087/2025, que institui IRRF de 10% sobre lucros e dividendos acima de R$ 50 mil mensais, ao mesmo tempo em que se discute o reajuste da faixa de isenção do IRPF para R$ 5.000,00. Entretanto, conforme o art. 14 da LRF, apenas medidas que impliquem renúncia efetiva de receita exigem compensação orçamentária — o que não se aplica à simples recomposição inflacionária.
2. Fundamento jurídico: o art. 14 da LRF
O art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal determina que toda renúncia de receita deve ser acompanhada de estimativa de impacto e medidas compensatórias, por aumento de receita ou redução de despesa. Contudo, a doutrina e a jurisprudência administrativa são claras: não se considera renúncia a mera atualização monetária de bases de cálculo, faixas de isenção ou tetos tributários, pois não há redução real da arrecadação — apenas preservação do valor econômico original do tributo. Pareceres da PGFN, como o nº 1.112/2011, e o Manual de Demonstrativos Fiscais da STN reforçam que a recomposição monetária visa à neutralidade fiscal e não configura benefício.
3. Análise dos três casos emblemáticos
a) IRPF — Última atualização integral em 2015, isenção vigente de R$ 3.036,00/mês, enquanto o valor corrigido desde 1995 seria R$ 6.433,00, gerando defasagem de cerca de 53%. Os cálculos foram realizados por meio da Calculadora do Cidadão do Banco Central do Brasil (BCB), utilizando o índice IPCA do IBGE para o período de 1995 a 2025, conforme metodologia oficial. Dados do DIEESE (2024) e da Receita Federal (Boletim de Arrecadação 2024) confirmam essa defasagem.
b) IRPJ — O adicional incide sobre lucro superior a R$ 20.000,00 desde 1996; corrigido até ago/2025 equivaleria a R$ 116.787,00, defasagem de aproximadamente 83%, segundo cálculo do BCB/IPCA.
c) Simples Nacional — O teto de R$ 4,8 milhões de 2018 corrigido até ago/2025 seria R$ 6,38 milhões, perda real de 25%, conforme cálculo do IPCA pelo Banco Central.
3.2. Adicional de IRPJ (art. 542 do RIR/1999)
O adicional de 10% sobre o lucro excedente a R$ 20.000,00 mensais permanece inalterado desde 1996. Se corrigido pela inflação, esse piso deveria ser de R$ 116,8mil/mês, conforme a Calculadora do Cidadão (BCB, IPCA). Conforme Contfisco (2024) e Jornal Contábil (2024), o Brasil possui cerca de 3,2 milhões de empresas fora do Simples Nacional, sendo aproximadamente 2,1 milhões no Lucro Presumido e 1,1 milhão no Lucro Real. Com base nesses dados, estimam-se ganhos inflacionários adicionais para o governo entre R$ 25 e R$ 112 bilhões anuais, dependendo do cenário de incidência.
3.3. Teto do Simples Nacional
O Simples Nacional não teve correção desde 2018. Se o teto fosse atualizado pela inflação calculada via IPCA (Banco Central do Brasil, 2018–2025), ele deveria ser de R$ 6,38 milhões/ano. A defasagem provoca aumento da alíquota efetiva entre 15% e 20%, forçando empresas para regimes mais caros.
3.4. Efeito arrecadatório do congelamento do Simples Nacional
Dados da Receita Federal (2024) e da FPE (2024) indicam que o Simples Nacional reúne cerca de 18,2 milhões de empresas, representando 84% do total de CNPJs ativos no país. A arrecadação total do regime atingiu aproximadamente R$ 188,9 bilhões em 2024. Considerando o teto nominal de R$ 4,8 milhões congelados desde 2018 e inflação acumulada de 33% (IPCA, calculado pela Calculadora do Cidadão - BCB), o teto corrigido deveria ser R$ 6,38 milhões/ano. Essa defasagem implica aumento indireto de arrecadação de aproximadamente R$ 34 bilhões/ano (+22%), segundo estimativas baseadas em relatórios da RFB e Nota Técnica da FPE.
4. Incoerência fiscal do PL 1.087/2025
O PL nº 1.087/2025, que propõe IRRF de 10% sobre lucros e dividendos acima de R$ 50mil mensais, cria nova fonte de receita ao mesmo tempo em que o governo alega que o reajuste da faixa de isenção do IRPF exigiria compensação. Como a recomposição apenas repõe a inflação acumulada, não configura renúncia de receita, sendo, portanto, dispensada de compensação conforme o art. 14 da LRF.
5. Conclusão
A falta de atualização das bases tributárias gera aumento oculto de carga tributária, contrariando os princípios constitucionais da capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF/88) e da vedação ao confisco (art. 150, IV, CF/88). A recomposição inflacionária não reduz receitas reais, não é benefício fiscal e não demanda compensação sob a LRF. Portanto, antes de criar novas fontes de arrecadação, o governo deveria corrigir monetariamente as bases tributárias existentes, restabelecendo neutralidade, justiça e segurança fiscal."
Referências
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